Psicanálise e sociedade do cansaço

No seu livro A sociedade do cansaço o filósofo coreano Byung-Chul Han, ao descrever as características da sociedade pós-moderna do desempenho, contraposta ao projeto moderno da sociedade disciplinar, questiona os pressupostos da psicanálise freudiana ortodoxa que se constrói em torno das questões ligadas à repressão do desejo.

Se o que caracterizava a sociedade disciplinar era o domínio de estruturas de caráter superegóico que visavam disciplinar o desejo, colocando sempre o sujeito diante do desafio de lidar com as imposições do mundo externo, desafio que Freud aponta no seu memorável texto “O mal-estar da civilização”, a sociedade do desempenho traz essas imposições para dentro do indivíduo pós-moderno que se vê auto desafiado para “dar conta” de aspirações que ele mesmo se impõe como projeto de vida, no contexto das exigências da sociedade de consumo neoliberal, que cria seus próprios padrões de sucesso, bem-estar, qualidade de vida e realização pessoal.

Se o sujeito pós-moderno deixa de viver as angústias e os sintomas da repressão e passa a viver as ansiedades da autorrealizaç,ão, de fato parece que a clínica psicanalítica pensada a partir da repressão das pulsões libidinais deixaria de ser atual. Byung-Chul Han, contudo, parece desconhecer os avanços dos estudos psicanalíticos pós-freudianos que levaram a focar não apenas os conflitos pulsionais e sim as neuroses narcísicas, fruto de traumas primitivos, ou daquilo que Balint chama de “falha básica”.  Sobretudo, Byung-Chul Han parece desconhecer as propostas da Psicanálise Contemporânea voltadas para o estudo do Self como experiência fundamental da estruturação da subjetividade.

No final do seu livro (p. 100), o filósofo coreano faz uma interessante distinção entre o sujeito moderno  que luta para lidar com as imposições superegoicas e o sujeito pós-moderno capturado pela sedução do eu-ideal.

Enquanto o superego aponta para o território da inibição do desejo, o eu-ideal se apresenta como uma instância erótica, sedutora, uma imagem de si que é investida de forma narcísica pelo sujeito. Isto faz com que a submissão ao eu-ideal não seja percebida como uma submissão, mas, ao contrário, como uma autolibertação, uma forma de expansão infinita, que o sujeito abraça de forma onipotente, para logo se ver às voltas com os sintomas depressivos, ou com atuações de caráter hipomaníaco. Os corolários sintomáticos que Byung-Chul Han descreve vão do burnout, ao pânico, problemas alimentares, automutilação e em caso mais graves o suicídio. Nesta busca excessiva por uma vitalidade infinita o ser humano se esgota numa espécie de congelamento interno que o torna um morto-vivo.

Considero as teses de Byung-Chul Han extremamente alinhadas com alguns dos sintomas que tendem a dominar a clínica psicanalítica atual. Sobretudo acho importante a distinção entre a  repressão do desejo que percorre as manifestações culturais da sociedade moderna empenhada em construir e defender aquilo que os pós modernos apontam como “grandes narrativas” e a sedução que caracteriza a proposta do capitalismo neoliberal.

Se por um lado é claramente perceptível o declínio das grandes narrativas ligadas às estruturas sociais, religiosas e familiares autoritárias, apontando para a crise da imago do Pai, por outro lado elas ressurgem de forma irracional nas renovadas adesões a discursos autoritário e rígidos, voltados a ridicularizar qualquer tipo de diálogo com o “diferente” ou com aquele que discorda.

Tudo isso mostra que estamos vivendo uma complexidade do Real que nos desafia e que nos confunde. Se por um lado os discursos repressivos parecem superados, por outro lado os discursos radicais do neoliberalismo e dos autoritarismos de direita e de esquerda também acabam se mostrando insustentáveis. O Real aponta e mostra que uma economia unicamente preocupada em produzir cada vez mais riqueza (para poucos) é insustentável diante da realidade ambiental e da realidade socioeconômica das massas marginalizadas. Da mesma forma os discursos radicais da direita (ou da esquerda) seduzem as massas por oferecer “segurança” diante do caos (como sugeria Bauman), mas logo se veem desafiados por uma realidade adversa que o seu teor redutivo acabou ignorando.

Na realidade, em ambos os casos estamos diante de uma onipotência narcísica sedutora, como demonstra Byung-Chul Han, mas destrutiva. O limite é o infinito, mas o infinito acaba mostrando ao ser humano o quanto ele é finito. A sedução do infinito volta a trazer para o campo do psiquismo a necessidade do limite e da repressão da tendência disruptiva do desejo.

Tudo isso aponta pela importância do trabalho clínico da Psicanálise Contemporânea estar voltado para a experiência do Self, do “si-mesmo”, como experiência fundante de uma estruturação narcísica saudável que possa se contrapor às seduções do eu-ideal e integrar os ideais do eu à estrutura de personalidade subjetiva, permitindo experiências criativas, que levem em conta a realidade e nas quais seja resgatada a sensação de estar vivos.

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